A Netflix lançou mais uma produção que serve para muitas reflexões. A minissérie da vez é “Adolescência”. A história começa a partir da morte de uma adolescente, e o suspeito do crime, Jamie, é um aluno da escola em que ambos estudavam. De início, podemos imaginar que se trata de mais uma produção sobre crime e a captura do culpado por algo tão brutal, mas não é exatamente assim. Logo nos primeiros momentos da série, vemos que os movimentos de câmera indicam algo mais próximo e íntimo do que está acontecendo, alimentando nossas expectativas. Entrando em uma explicação mais técnica a fim de enriquecer meu ponto, no cinema, denominamos “plano sequência” uma cena que não tem corte, e esse take dura mais do que o habitual sem cortes na mesma perspectiva, elevando o nível de realidade e imersão do telespectador. Abaixo, vemos um exemplo do premiado filme 1917, onde há uma cena de mais de 1 minuto gravada sem cortes.
Voltando à série “Adolescência” e tomando o filme 1917 como exemplo, a minissérie também apresenta a mesma característica de jogo de perspectivas em cada episódio. São 4 episódios que mostram a visão e o entendimento de alguns personagens sobre o caso. E é aqui que começamos a perceber como um ato brutal afeta tantas pessoas e como elas lidam com isso.
O choque de realidades
Num primeiro momento, vemos como os policiais e advogado envolvidos lidam com o caso de um menor de idade ser indiciado por homicídio. Ao mesmo tempo, temos os pais e o próprio suposto autor do crime sendo pegos de surpresa. Aqui, há uma repetição de falas como “vocês quebraram nossa porta” e “vocês invadiram nossa casa”. Podemos observar, nesse cenário, um encontro de realidades e diferentes linguagens. De um lado, a polícia praticando seu dever de capturar um autor de crime, seja de que jeito for. Esse “jeito”, no entanto, envolveu a destruição de um item importante na propriedade de uma família, algo bastante simbólico: uma porta. A proteção da casa foi quebrada, a intimidade da família está exposta, e isso é visto como um absurdo. Mas não para a polícia, a instituição que está ali para proteger. Surge, então, a questão: como proteger violando o íntimo de uma família?
A família, composta por pai, mãe, filha primogênita e filho (protagonista da trama), não é formada por galãs, não é uma família rica ou bem estabelecida economicamente, e não mora em um bairro de classe alta. É uma família comum. Não é uma família de vitrine. Ao saber que o filho foi registrado cometendo o crime, mesmo negando, as coisas começam a acontecer de verdade para todo mundo. As perguntas habituais, como “Por quê?”, “Teve ajuda?”, “Cadê a arma do crime?”, são feitas tanto pelo telespectador quanto pelos personagens. É importante ressaltar aqui o comportamento e linguagem corporal dos policiais também, em como eles demonstram um certo tédio(?) em lidar com aquela situação. Anteriormente, um outro policial expressa sua frustração ao lidar com casos do tipo e envolvendo menores de idade. Então, seria recorrente?

Educação com mão de ferro
Chegamos a outro cenário, que é a escola. Novamente, voltamos aos personagens dos policiais Luke Bascombe e Misha Frank. Nos diálogos, é perceptível que ambos têm questões internas relacionadas àquele ambiente. Afinal, quem não tem angústias escolares levadas para a vida adulta?
Ao longo de algumas cenas, começamos a ser apresentados ao ambiente em que Jamie vivia: gritos, ordens, bullying, falta de liberdade e expressividade dentro de uma estrutura que aparenta ser organizada para fornecer educação e cuidado. O autoritarismo parece fazer parte da disciplina escolar. É aqui que somos introduzidos ao lado paterno do policial e à figura de autoridade. Acho que, nesse momento, Freud é mais protagonista que o policial, pois é por aqui que começamos a entender um pouco do que Freud disse sobre a figura de autoridade, a paternidade e o ideal do eu, ao mesmo tempo em que Winnicott nos fala sobre a influência do ambiente no desenvolvimento humano.
Ao longo do nosso crescimento, a busca pelo encaixe perfeito no meio social é nosso caminho principal para viver. Ser aceito por quem amamos e ser validado e aceito nas rodinhas de conversa das pessoas mais populares fazem da adolescência um período tortuoso. Vemos, durante os episódios, o quanto Jamie era mais apegado ao pai, sempre o colocando como aquele que precisava mostrar que Jamie estava certo ou que o deixava orgulhoso. O episódio com a psicóloga é o ponto chave para entendermos essa dinâmica. Também é onde vemos seus rompantes de raiva e conflitos internos ao saber que não irá mais se encontrar com a psicóloga, um dos poucos vínculos externos que lhe dava atenção e o tratava com cuidado, mesmo que isso fizesse parte do seu trabalho. Jamie projeta em Briony Ariston o que faz com o pai, perguntando sobre seus sentimentos por ele.
“Eu não vou ser igual ao meu pai”
Os momentos finais foram reservados para mostrar como a família estava lidando, depois de alguns meses, com a detenção do filho. Eddie demonstra semelhança nas reações de estresse com o filho, o que nos mostra o início de tudo. A esposa e a filha tentam manter o ambiente equilibrado, já que era o aniversário dele. É palpável que a vida nunca mais foi a mesma. Como levar uma rotina como antes, depois de terem sido abalados por algo tão fora de sua capacidade emocional de sustentação, como ter um filho acusado de homicídio?
Nessa parte, é preciso reservar espaço para o debate sobre a construção de gênero. É notório que a trama também está voltada para como se forma um homem e como definimos a masculinidade na nossa sociedade ocidental. Em vários momentos, somos empurrados para essa reflexão sobre a manutenção da virilidade e a formação do “Eu” aos olhos do pai (no caso, um pai freudiano).
O episódio final foi reservado para Eddie. Descrevo-o como um episódio de luto. Um ressentimento daquilo que poderia ter sido, de um plano que não deu certo, da paternidade falha, da ilusão de controle sobre o que o filho consumia e como ele crescia… São tantos os lutos. Uma criança espancada pelo pai e um homem que não queria repetir o que viveu na infância. Mas, então, o que ele se tornou? E como ele iria se estruturar a partir de um molde diferente do que tinha em casa? Não houve falta de entendimento sobre o que acontecia com ele na infância, mas precisamos compreender que sair dos moldes familiares é um caminho difícil, especialmente a partir do momento em que a família é nosso primeiro ambiente de referência na vida. Quais foram as referências dele para além da família? Voltando um pouco ao episódio entre Briony e Jamie, ela chega a abordar a relação dos pais para tentar entender se havia indícios de violência dentro da família, o que foi negado por ele. Porém, vemos outro tipo de situação: a tensão de uma pré-explosão do pai. Muito mais do que o ato em si, é a ameaça do acontecimento que pesa, o que não deixa de ser um ponto desfavorável para o crescimento e o entendimento de vínculos afetivos.
A psicologia das cores é muito importante aqui na transição da série. No início, o pai estava de roupa laranja enquanto todo o cenário envolvia cores azuis. Ao final da série, enquanto ele está no quarto do filho usando a camisa que ganhou da esposa de cor azul, ele se mescla com o “mundo”do filho. É a volta ao passado dele e onde entendemos que ele sabe o que o filho sente.


O resumo da ópera
A minissérie retrata o quanto a influência dos ambientes em que crianças e adolescentes crescem e vivem molda seu comportamento. Temos também a influência da internet e das redes sociais, com seus nichos de comunicação e linguagens próprias, que criam uma separação entre o mundo externo e o mundo virtual. Um exemplo é o filho do policial Bascombe explicando ao pai o significado dos emojis e como isso mudou a rota da investigação e o entendimento do caso, tornando-se até material para a avaliação psicológica Ariston.
Preciso abrir um espaço para falar da vítima em questão, uma adolescente que, aparentemente, criava insultos sobre Jamie e sua sexualidade. Na série, sinto que há uma brecha para o público julgar os atos dela também, questionando o caráter da vítima. Pensando a fundo, ela também é resultado dessa alegoria gênero-sexual performática que a série retrata. Praticasse bullying ou não, de onde viria a visão que ela tinha sobre incels, sexualidade e aversões?
Para mim, o maior ponto dessa produção é o fato de ela ser crível, não distante de nossas vidas reais e cotidianas, o que torna tudo mais verdadeiro e preocupante. Apesar das diferenças culturais e jurídicas que envolvem o ambiente da série, já que estamos falando de uma produção estrangeira, o enredo não se afasta ou difere muito das realidades de outros lugares, especialmente considerando que a internet foi a grande porta de entrada para tudo o que aconteceu.